Escrita criativa traz felicidade?, entrevista a Carla Costa do Soul Nurture
Ou não.
Sou daquelas pessoas que ainda anda com um bloco de notas na mala e que acredita que não há dispositivo que substitua a relação que temos com o papel. A forma como nos expressamos a escrever à mão é insubstituível.
Por tudo isso e mais alguma coisa, aventurei-me no meu primeiro Workshop de Escrita Criativa. Este foi dirigido pela Carla Costa e com uma energia incrível. Desafiei a Carla para nos falar um pouco sobre o que é afinal isto da escrita criativa e de que forma ela nos pode tornar mais felizes.
E: O que é para ti a escrita criativa e o que ela abarca (contos, poesia, ...)?
C: A escrita criativa abarca a palavra, independentemente do género literário. A sua prática implica, para mim, a habilidade em brincar, explorar e encontrar com curiosidade novos caminhos para as histórias que nos chamam para ser contadas. Temos que nos lembrar que “a arte não é uma coisa – é um caminho” (Elbert Hubbard).
E: A escrita criativa é só para pessoas de letras ou com formação específica?
C: A escrita criativa não exclui quaisquer faixas etárias ou perfil formativo, é muito democrática, neste sentido. A poetisa Jane Hirshfield defende que “na sinceridade da concentração, o mundo e o self começam a convergir. Neste estado, ocorre uma expansão: do que pode ser conhecido, do que pode ser sentido, do que pode ser feito”. Por isso, qualquer pessoa, sendo naturalmente criativa – e somos todos, pode praticar e desenvolver este músculo se tiver essa predisposição.
E: Como pode uma pessoa começar a praticar escrita criativa?
C: Criar uma rotina e, nela, uma prática experimental regular. Ter um diário, que anda sempre connosco para registos e reflexões, pode ser uma boa forma de começar. Picasso dizia “para saberes o que vais desenhar, tens de desenhar”, e é isso mesmo. É preciso escrever para que as revelações no caminho da escrita se manifestem. Sem acção não há resultados. Segundo Tchaikovsky, “um artista que se respeita não deve baixar os braços sob o pretexto de que não está inspirado”. No entanto, há momentos em que é necessário um outro tipo de movimento: a pausa, aquela que cataliza a renovação. Há que escutar para respeitar a integridade criativa.
E: De que forma se consegue ganhar inspiração para este tipo de escrita?
C: Tudo o que existe ao nosso redor, da vizinha que estende a roupa, à chuva que bate na janela ou o chá que se bebeu durante a manhã, é material pronto a usar no estímulo à inspiração criativa e criadora. Como defende Susan Sontag “um escritor é um observador profissional”. É preciso ver o invisível no visível, estar atento, disponível e presente. Escrita criativa é sobre a capacidade de criar relação com as coisas e deixar-se surpreender por elas.
E: Quais os benefícios da escrita criativa?
C: A escrita criativa suporta o nosso olhar sobre o mundo, apurando os nossos sentidos e a nossa perspectiva sobre ele. Esta prática pode ser bastante liberdadora, catártica até, quando nos permitimos a dar forma a conteúdos que só aguardavam por uma porta para sair. Para além do mais, a página branca é um horizonte infinito que não nos julga. Ela está lá, simplesmente, disponível para o que tivermos capacidade de dar.
E: Pode a escrita criativa promover a FELICIDADE? Se sim, de que forma podemos exercitá-la para promover a FELICIDADE?
C: Claro que pode! A escrita criativa ajuda-nos a sair do nosso mundo pessoal para criar mais mundo, explorar novas possibilidades, ao reconhecermos e cuidarmos o nosso poder em imaginar e criar. Crescemos quando escrevemos, a conquista de novas realidades devolve nutrientes positivos. O processo de escrever é semelhante a um processo de gestação que requer paciência. Mas se se for paciente o suficiente, como um bom e fiel jardineiro, as vantagens da escrita criativa podem estar próximas, prontas para uma colheita generosa e gratificante.
E: Poderias dar um exemplo de um exercício simples de escrita criativa que se possa fazer em casa?
C: Há um exercício para desbloquear a criatividade que tem como pressuposto uma escrita automática, excelente para trabalhar a tendência ao perfeccionismo exacerbado que, não sendo saudável, é “um assassino da criatividade” (Anne Lammot). Começamos com uma palavra ou título que dá o mote, mas a partir daí abrimos mão do futuro sentido do texto, do controle das vírgulas, dos pontos finais e demais pontuação. Assim, durante 5 minutos, o objectivo é escrever, escrever, escrever, sem reler o que está para trás e sem parar a escrita. Sempre que ocorre um bloqueio, deve-se retomar a palavra âncora.
E: Sugeres alguma leitura / filme / outro relacionada com este tema?
C: Sugiro o trabalho inspirador de Julia Cameron, autora do livro The Artist’s Way, numa perspectiva abrangente do que é isto do caminho do artista. A autora tem um método que inclui duas ferramentas base, nomeadamente as páginas matinais e o sair para ir ver coisas, que implica uma exposição ao mundo para além da nossa caixinha individual.
Sugiro ainda Quills- Penas do Desejo, sobre a história do Marquês de Sade, brilhantemente interpretado por Geophrey Rush. É incrível como no filme ele não conseguia não escrever e encontrava sempre, apesar da adversidade, novas formas de praticar!
E: Escrever parece ser uma prática que caiu em desuso. Concordas?
C: Escrever à mão é, de facto, uma prática algo romântica num mundo de computadores, tablets e telemóveis. As pessoas estão educadas e adaptadas nesta nova literacia tecnológica. Para recuperar o hábito de escrever à mão, pelo menos em certas circunstâncias, é necessário reconectarmo-nos com a memória. É todo um trabalho de sensibilização individual e colectiva que, a meu ver, é necessário, para não perdermos o contacto com a raiz e com o real.
E: Gostaria que fizesses uma breve descrição sobre ti e o teu percurso
C: Sou licenciada em comunicação e em antropologia, possuindo ainda uma formação em coaching com certificação internacional. Em termos profissionais reuni aprendizagens nas áreas da assessoria mediática, comunicação interna, produção e tradução de conteúdos. Paralelamente, investi no meu desenvolvimento pessoal. Destaco a realização de vários cursos pela Sociedade Portuguesa de Arte-Terapia, encontros de Terapia através do Drama e Movimento (método Sesame) e diversas formações ao nível do movimento, dança, psicoterapia corporal (Biossíntese), criatividade, ritual e contoterapia.
E: Com um percurso em que abraças diferentes áreas - recordaste quando é que a escrita criativa começou a fazer parte da tua vida? Ou sempre fez? Qual é o papel que a escrita criativa desempenha na tua vida?
C: Lembro-me que quando era pequenina e saía com os meus pais, pedia para me comprarem um livro. As histórias sempre foram das minhas melhores amigas. Durante algum tempo, acabei por ser leitora, o que é também uma forma de exercitar a escrita criativa. Depois deixei de ler e, facto, escrevia pouco. Ainda não tinha encontrado a minha via, ainda não sabia como fazê-lo. Voltei-me a sério para a escrita depois da faculdade, por via de desafios profissionais. A escrita era (e é) a minha ferramenta de trabalho, a sua força. Para além do meu exercício profissional, escrevo todos os dias, sem excepção, sejam reflexões, pensamentos ou ficção, nos mais variados registos. É um ritual. Faz parte da minha higiene diária e do meu amadurecimento como pessoa.
E: Se alguém quiser experimentar uma sessão de escrita criativa contigo, onde /como o pode fazer?
C: No âmbito do projecto comunidade da Soul Nurture, oriento, mensalmente, uma oficina de escrita criativa na Biblioteca Municipal de Sintra, de acesso livre, mediante inscrição prévia para o email dcul.bms.sintra@cm-sintra.pt. As próximas datas podem ser consultadas aqui.
Adicionalmente, estou disponível para workshops e sessões particulares, sendo que estou aberta à criação de um clube de escrita, em periodidade e horário a acordar.
E: Alguma mensagem que queiras deixar em especial aos leitores do blog?
C: Sejam felizes agora, apreciem o vosso corpo que respira, que pisa este chão, que pertence a este mundo. O direito à existência é algo verdadeiramente mágico e que vem, naturalmente, com uma grande responsabilidade. Permitam-se à simplicidade das pequenas coisas e cultivem a gratidão. Experimentem escrever sobre isto.
E: De que forma as pessoas te podem encontrar e entrar em contacto contigo?
C: Através do meu site: https://soulnurturesoul.wordpress.com/ ou dos meus contactos: soulnurturesoul@gmail.com | 96 578 21 49
Imagem: Carla Costa
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Que entrevista tão interessante, Sofia :)
ResponderEliminarEscrever também me ajuda muito a lidar melhor com certos aspetos da minha vida e da minha personalidade. Ter voltado a escrever, depois de um período demasiado longo sem o fazer, está a ser transformador, pela positiva, claro.
Obrigada tanto à entrevistadora, como à entrevistada. Foi inspirador!
Beijos.
Escrever tem mesmo um poder transformador, não diria melhor!
EliminarObrigada Mafalda, beijinhos!
Olá Sofia!~
ResponderEliminarGostei imenso de ler esta entrevista, parabéns a ti e à entrevistada pelo excelente trabalho!
Sempre adorei escrever e já o faço desde miúda. Para mim funciona como uma terapia, tem um efeito maravilhoso em mim! Como diz e muito bem, a Mafalda, a escrita tem um poder transformador!!
Beijnho e bom fim de semana!
Olá Catarina!
EliminarEscrever também é algo que faz parte de mim e por isso participei neste Workshop e, posteriormente, quis saber mais, o que me levou a entrevistar a Carla.
Fico contente que tenhas gostado :-)
Beijinhos!
Adorei a entrevista e concordo que deveríamos escrever mais! Eu por exemplo, tenho sempre uma agenda anual escrita... Hoje em dia é tudo eletrónico e os mais novos seguem apenas isso.
ResponderEliminarEu confesso que em relação à agenda anual me rendi às novas tecnologias e concentro tudo no Google Calendar (ter a sincronização com o telemóvel e os lembretes é fantástico para mim!)
EliminarNo entanto, no que diz respeito à criatividade e ter ideias, não há nada como escrever à mão.
Quanto aos mais novos, sem dúvida! Seria bom que não perdessem este "bem" que é criar através da escrita à mão.